Brincando nos campos do Senhor



          Minha companheira de infância em Santana 1973-76 era a Madame Mein. Uma pequinesa mais clichê que a própria raça. Penso que se houvesse salvação por obras, Madame Mein estaria no céu. A cadelinha seria salva pela dor e pelo sofrimento. Quem sabe se o fôlego de vida dos filhos dos homens se dirige para cima e o dos animais para baixo, para a terra? (Eclesiastes 3.21). Heh heh... Acontece que desde bem novinho, eu queria ser pastor de igreja, e eu fazia da cachorrinha um crente muito fiel. Cantava corinhos, e exigia que Madame Mein também cantasse. Quando orava, fazia com que ela fechasse os olhos. Batizei a pobrezinha por aspersão, mas depois de visitar uma igreja batista, resolvi batizá-la novamente por imersão (num sei qual que valeu...). Tinha também santa ceia com suco de uva na xícara de café e pão de forma cortadinho em cubos. Eu impetrava a benção apostólica e depois do amém tríplice, findado o cultinho, convidava a todos para um delicioso cafezinho (ou cházinho) com bolacha. Durante a semana, às vezes eu fazia visitas (pra cachorra), e perguntava como vão as crianças, e o trabalho, e como vai a Dona Bernardina?

          Nem tudo era tão igrejeiro, eu também desfrutava de uma vida social repleta de acampamentos e retiros. Compartilhava com ela a raspa da massa de bolo, picolés e pirulitos. Ah, tinha também escola dominical e EBF, com lanches e estórias missionárias. 

          Depois, no seminário, aprendendo a ser pastor, a professora de sociologia, Ana Maria Coelho, deu-nos a tarefa de resenhar o filme Brincando nos Campos do Senhor (At Play in the Fields of the Lord 1991 de  Héctor Babenco). Um casal de missionários e seu filho pequeno embrenham-se na selva amazônica brasileira para catequizar índios ainda arredios à noção de Deus. Martin Quarrier (Aidan Quinn) é sociólogo e termina sendo motivado pelas experiências de outro casal, os Huben. As intenções religiosas e a harmonia entre brancos e índios no local ficam instáveis devido à presença de Lewis Moon (Tom Berenger), um mercenário descendente dos índios americanos. A tensão aumenta e terríveis acontecimentos finalizam o filme. Pensei como era comum transformar o trabalho no reino de Deus numa brincadeira nada agradável ao Senhor.
Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das coisas próprias de menino. (1Coríntios 11)
          No meu primeiro ano de ordenação, tinha uma canção dos jovens que dizia “tem de ter fogo no altar, tem de ter fogo no altar, pra queimar o holocausto em nome de Jeová...” muitos, vibravam com o poder que enchia o coração. Um verdadeiro entusiasmo, que quer dizer, literalmente cheio de Deus. Acontece, que quando acabava o louvorzão e as luzes se apagavam, aquilo que parecia escondido de Deus e de todos, ressurgia num paganismo desgraçado, e o culto a Jeová se transformava novamente numa brincadeira de criança, o que pode parecer inofensivo, mas é na verdade uma idolatria baalística, pagã e demoníaca.

          Tudo aquilo que, de alguma forma, cultiva e difunde qualquer manifestação religiosa que não se coadune com as Escrituras Sagradas é brincadeira, folia, criancice. Mesmo ao observarmos as infantilidades no próximo, é dificílimo fugir de nós mesmo termos uma mentalidade infantil. 

          Nos casos mais drásticos que vemos em igrejas ou grupos, alguns brincam quando imantam os objetos com poderes místicos ou sagrados (hierofania), transformando-os naquilo que eles não são. Água benta, ou de um lugar sagrado, rosa, sal e fronhas ungidas, lenços “contaminados” com “suor ungido” (Urrgh)  de algum líder. Unções de carros, casas, móveis, quarteirões (marcando território), partes íntimas, etc. Banhos de azeite no intuito de receber a benção sacerdotal dos ícones veterotestamentários, tais como Abraão, Arão, Moisés etc. Circunscrição geográfica divina; em outras palavras, acreditar e difundir a idéia de que milagres, “revelações” e cultos só podem ser realizados em locais específicos. Ex: montes, rios, vales, Jerusalém, na igreja, etc. O Senhor é todo poderoso para realizar milagres, ser adorado, bem como cultuado em qualquer lugar. Viaje a Jerusalém para agregar conhecimento cultural e histórico e não com a finalidade de cumprir uma missão (tipo “Caminho de Santiago de Compostela Gospel”), fazer uma jornada de “autoconhecimento”, receber “fluídos” do Sinai ou do “Santo Sepulcro”.

          Meu pai conta da diferença entre lugares em Jerusalém, onde dizer ter sido o túmulo de Jesus. E como o guia disse, alguns dizem ser lá, outros aqui, mas o mais importante é que “ELE NÃO ESTÁ AQUI, JÁ RESSUSCITOU”. Lembre-se de que o Templo do Senhor hoje somos nós. Infelizmente, para muitos cristãos místicos, a Terra Santa virou uma “Disney” espiritual.

          A descrença na escritura força a atribuição de poderes místicos aos líderes, às revelações, aos sentimentos, que baseia a vida e a crença em raciocínios irados, frustrados e falsos, tudo com uma capa de santidade que transforma a nossa vida numa verdadeira baalização de quem pensamos ser deus. Fazemos uma imagem de escultura (mental) daquilo que imaginamos ser deus, ao criarmos doutrinas a partir de versículos isolados e fora do contexto.  Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. (Êxodo 20.4)

          Um exemplo de como pode se fabricar uma doutrina, é o caso das danças litúrgicas: Se por algum motivo você está muito feliz com o Senhor, sem problemas, pule, saia gritando, glorificando e louvando ao Senhor, tome um pandeiro e saia tocando e dizendo “Só o Senhor é Deus”, enfim. Entretanto, isso não lhe dá autorização, e nem é base escriturística, para criar um “Ministério de Dança” na igreja. Inclusive, no Novo testamento, a dança está relacionada com a sensualidade:
Chegado, porém, um dia oportuno quando Herodes no seu aniversário natalício ofereceu um banquete aos grandes da sua corte, aos principais da Galiléia, entrou a filha da mesma Herodias e, dançando, agradou a Herodes e aos convivas. Então o rei disse à jovem: Pede-me o que quiseres, e eu to darei. E jurou-lhe, dizendo: Tudo o que me pedires te darei, ainda que seja metade do meu reino. Tendo ela saído, perguntou a sua mãe: Que pedirei? Ela respondeu: A cabeça de João, o Batista.
(Marcos 6.21-24)
           Outra canção que me remete aos dias de infância é uma que diz: “Há certos dias na vida em que a gente se esquece de que Deus existe, e nem se quer uma prece consegue fazer porque está muito triste. Se pra você tudo em volta parece sem graça e sem muito valor, falta a você uma coisa que é muito importante e se chama amor...” Isso tem me incomodado ultimamente.. Conhecemos bem a palavra de Deus. Com fácil e bela articulação, muitas vezes falamos a respeito de Deus, de seu amor, e de sua graça. Mas no fundo da alma, a crença básica que temos é uma de desconfiança, tanto no poder e providência de Deus, como no seu amor, sua misericórdia e sua graç a. O que acontece, é que nas provas da nossa vida, nos afogamentos e batalhas, agimos como se Deus fosse um ídolo, como se na verdade não existisse ou não nos amasse. Aí então agimos com desconfiança infantil e sem amor. Talvez até num deslumbramento acabássemos por pedir a cabeça dos Joâos Batistas que nos cercam em amizade. O culto que traz fogo aos altares molhados que testam toda a nossa fé, terá fogo e consumirá o holocausto que entregamos de nós mesmos, em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus.

          Certamente eu já devo ter brincado nos campos do Senhor mesmo depois de grande. E posso até me apanhar brincando agora, mas o meu desejo é desempenhar com seriedade o meu papel. Quero pastorear seguindo a instrução de Jesus:
Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos com ele, então, se assentará no trono da sua glória; e todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará uns dos outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas; e porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos, à esquerda; então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo. Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes;estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me.Então, perguntarão os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te vestimos? E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar? O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.
Mateus 25.31-40

Daniel

Comentários

Postagens mais visitadas