De trotes e sustos: o fim da picada
No final do ano passado, talvez alguém se lembre, escrevi que aprontei, numa só noite, um montão de trotes para a família toda. Pra minha esposa não descobrir que eu tinha acabado com a base de unhas, lavei o vidrinho com acetona e enchi de óleo de soja. Precisava ver a cara dela! Usei o esmalte na pintura do sabonete. Sabonete pintado de esmalte ou base não faz espuma. O tubo de creme dental vazio foi substituído por raiz forte (wasabi - aquela verdinha japonesa). Meu filho gostou disso, a filha não. Aprendi a tirar a bolinha do tubo de desodorante, substitui o líquido por detergente de louças. O adoçante foi substituído por água e sal. Oh moleque! – Depois das surpresas e risadas foi a vez de compartilhar. Muita gente comentou e curtiu. A mulher de um colega até comentou: “É o fim da picada!”
A origem do termo “o fim da picada” vem da frustração de chegar a um certo ponto, numa trilha aberta no mato a golpes de facão, e perceber que é impossível prosseguir. Na gíria popular, “o fim da picada” significa algo inaceitável. Ouvi uma vez, que o fim da picada, na verdade, se trata de o momento antes da muriçoca sair voando.
Na pequena e pacata cidade de Florence, no Alabama, quando eu estava no colegial, havia uma lenda local sobre o fantasma de Maddox na Ghost Bridge, uma ponte já interditada há muito tempo. Alguns anos antes, um casal marcou encontro lá. A caminho de casa, o rapaz perdeu o controle da direção. O carro mergulhou no rio. Dois dias depois encontraram o corpo da adolescente, mas nunca encontraram o corpo do garoto.
Ao longo do tempo, a lenda cresceu para um "à meia-noite, às vezes, dá para ver uma luz azul na água — o fantasma do menino à procura da namorada." Um dia, eu e uns amigos falávamos sobre gente que tinha visto o fantasma de Maddox na ponte assombrada. Ao anoitecer, fomos para a beira do rio, com certeza pra ver se tinha a tal da luz azul. Um dos rapazes que estava junto de nós resolveu caminhar na margem do rio, sozinho. Metido a machão, Terry embrenhou-se no mato entre bravatas e palavrões. Outro colega, mais brincalhão sugeriu um imenso susto que serviria de lição para o bravo. Escondidos, eu e Tommy, num momento ideal saímos do mato gritando: "AHHHHHHHGGGHH". Oh moleques!
Já levei muito susto, e já preguei muitos trotes. Mas foi ao reler uma passagem bíblica que percebi quantas vezes eu me assustei com a coisa errada. Jesus, no encontro dramático com o endemoninhado gadareno pergunta seu nome (Lucas 8.27-35). "Legião" respondeu o possesso, pois eram muitos os demônios que o possuíam. Se eu estivesse lá, certamente tremeria de medo. Ao expulsar os demônios, Jesus permitiu que eles (Legião) tomassem os corpos de uns porcos que eram criados ali. Estes, possuídos se jogaram de um penhasco. É uma imagem estranha. Deveria assustar todo mundo, mas não foi o que mais assustou as pessoas. O momento realmente assustador foi descrito por Lucas: “De fato, acharam o homem de quem saíram os demônios, vestido, em perfeito juízo, assentado aos pés de Jesus; e ficaram dominados de terror.” (versículo 35).
Imagine um homem num cemitério, pelado, gritando e pulando pra todo lado. Certamente eu me assustaria. Mas na história, aquelas pessoas se acostumaram a isso. O que os assustava é que o homem que estava mal ficou bom. O que os assustou foi o santo, não o profano. Não foi apenas desconforto que sentiram. Foi medo, sangue frio, indiferença. Lucas diz:
E algumas pessoas que tinham presenciado os fatos contaram-lhes também como fora salvo o endemoninhado. Todo o povo da circunvizinhança dos gerasenos rogou-lhe que se retirasse deles, pois estavam possuídos de grande medo. E Jesus, tomando de novo o barco, voltou. O homem de quem tinham saído os demônios rogou-lhe que o deixasse estar com ele; Jesus, porém, o despediu, dizendo Volta para casa e conta aos teus tudo o que Deus fez por ti. (vv. 36-39).
É estranho que pessoas tenham medo das coisas erradas. Na verdade, se acostumam com as coisas erradas. Têm medo daquilo que deveria confortá-las. E elas estão muito à vontade com as coisas que deveria assombrá-las e aterrorizá-las. Pra mim, mais assustador é que hoje também experimentamos uma inversão de valores. Eu percebo a presença de um problema sutil. Estamos muito à vontade com o mal. Aceitamos diversos comportamentos errados e refutamos aquilo que é certo. Mas ninguém se incomoda com isso. Estamos tão confortáveis com o mal, que o que nos assusta mais é a presença de Cristo. A condição espiritual de muitos causa malefícios para a alma. O estilo de vida degenerado que toleramos é como o que foi registrado pelo profeta Jeremias:
porque desde o menor deles até ao maior, cada um se dá à ganância, e tanto o profeta como o sacerdote usam de falsidade. Curam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz. Serão envergonhados, porque cometem abominação sem sentir por isso vergonha; nem sabem que coisa é envergonhar-se. Portanto, cairão com os que caem; quando eu os castigar, tropeçarão, diz o SENHOR. (Jeremias 6.13-15)
Pensando sobre meus próprios temores, à luz da Palavra de Deus, o que me assusta mais é a passividade e indiferença quanto aos meus próprios erros. Aí é hora de lançar fora o temor de homens, coisas, sentimentos, dores e qualquer outro ídolo, e revestir-me do temor de Deus (coisa sábia). Faço minhas as palavras de Paulo quando escreveu aos filipenses: “esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” (Filipenses 3.13-14).
Meu amigo David conversava com sua filhinha Elena sobre sua dificuldade para dormir. Na mistura dos idiomas, disse:
“Papai, eu não consigo dormir porque tem monstros no meu quarto!” A resposta do pai foi rápida: “Não Elena, não tem nenhum monstro aqui no seu quarto.” A menina então explicou que os monstros na verdade eram as muriçocas. Isso sim era um bom motivo.
“Mas papai, eu preciso de alguém para me proteger das muriçocas!” O pedido de ajuda mostrou a confiança da filha. Então, David aplicou a sabedoria do Alto e com simplicidade e ternura, ensinou algo profundo que lhe será útil para toda vida:
“Você sabia que o papai consegue matar muriçocas?”
“É mesmo?” mostrando interesse e confiança.
“Papai usa os braços pra bater nas muriçocas... E Deus deu dois bracinhos pra você também, e você pode usá-los como o papai faz, para também matar as muriçocas que te incomodam!”
Entre gestos, mímicas, inglês e português, neste pequeno episódio, os Portelas me lembraram de que o Senhor capacita àqueles que temem as coisas certas.
O fim da picada, pra quem teme ao Senhor, na verdade, é um momento onde o susto e a dor pode transformar um coração medroso, duro, estulto e insensível. O medo produz susto e quem teme as coisas erradas não foi aperfeiçoado no amor (1João 4.18). Mas depois do susto, da picada, da queda, do deslize ou da exposição, não há muito que possa ser feito.
Para não ser condenado naquilo que é lícito (Romanos 14.22), o fim da picada significa arrependimento e conversão dos diversos medos, em temor do Senhor. O temor do Senhor põe em perspectiva tudo aquilo que realmente pode nos consumir. O fim da picada não é apenas quando a muriçoca vai embora, mas deve restaurar a confiança em Deus. Então, somos aperfeiçoados no amor. No amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo.
Daniel
Que nosso Deus nos ajude a enxergar e combater os "monstros" reais, para que possamos viver tranquilos na sua presença, enquanto transmitimos a mensagem da paz com nossa conduta, atitudes e palavras.
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